O Código Civil foi alterado pela Lei n. 13.777, de 20 de dezembro de 2018, que adicionou o Capítulo VII-A ao Título III do Livro III da Parte Especial desse código. O novo capítulo possui 20 artigos, os quais entraram em vigor no dia 4 de fevereiro de 2019 e disciplinam a chamada multipropriedade.
Nos termos da nova lei, “multipropriedade é o regime de condomínio em que cada um dos proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada”.
Antecedentes
Anteriormente à alteração promovida pela Lei n. 13.777 ao Código Civil, parte dos operadores do direito (advogados, teóricos e também cartórios de registro de imóveis) já entendia ser possível a delimitação temporal do uso alternado de um imóvel em copropriedade entre os condôminos por meio de ato registrado no cartório de imóveis. Entretanto, alguns cartórios de registro de imóveis e corregedorias respectivas sustentavam o entendimento diverso, segundo o qual não seria possível delimitar temporalmente o uso de imóveis em condomínio. Observe-se que a controvérsia concentrava-se na possibilidade de se conferirem efeitos reais à delimitação temporal do uso da propriedade (e não sobre a possibilidade de celebração de acordo com efeitos puramente obrigacionais sobre a matéria).
Essa variação de entendimentos, naturalmente, sempre causou insegurança entre aqueles que pretendiam realizar um empreendimento imobiliário que possuísse, em suas premissas, a divisão temporal do uso alternado dos imóveis. Essa insegurança foi observada, inclusive, pelo Relatório da Comissão de Constituição e Justiça, que assinalou:
“Apesar da ausência de regulamentação, a utilização da multipropriedade não se encontrava vedada em nosso ordenamento, podendo ser constituída como negócio atípico, com base nos princípios da liberdade contratual e da autonomia da vontade. Contudo, a multipropriedade ainda se encontra sujeita a controvérsias que geram insegurança jurídica e impedem um maior desenvolvimento de negócios baseados nesse arranjo jurídico. A principal controvérsia jurídica reside na dificuldade de lhe reconhecer natureza jurídica de direito real em face do princípio do numerus clausus ou da taxatividade, constante do ordenamento jurídico brasileiro, segundo o qual somente podem constar do rol dos direitos reais aqueles reconhecidos em lei. Este princípio veda qualquer possibilidade de haver a estipulação de direitos reais entre as partes mediante o exercício da autonomia da vontade, ou mesmo por meio de analogia com os direitos reais já existentes. A ausência do reconhecimento da multipropriedade como direito real na lei dificulta a incorporação ampla do instituto ao setor imobiliário por impossibilitar, por exemplo, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de cada fração de tempo como uma propriedade “autônoma” no registro de imóveis. O PLS 54, de 2017, propõem resolver esse problema prevendo a multipropriedade como direito real de caráter perpétuo, com disciplina, inclusive, do modo do seu registro perante o registro de imóveis”.
No âmbito judicial, um dos precedentes mais representativos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a matéria explicita as divergências que existiam sobre o caráter real (e não puramente obrigacional) do acordo de multipropriedade. Trata-se do Recurso Especial n. 1.546.165/SP, em que o Ministro Villas Bôas Cueva votou por não reconhecer o caráter real da multipropriedade e, de modo divergente, os Ministros João Otávio Noronha, Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro e Paulo de Tarso Sanseverino reconheceram que a multipropriedade no caso sob exame se revestia de natureza jurídica real. Como consequência, os ministros julgaram, por maioria, que a penhora dirigida contra um dos multiproprietários não poderia incidir sobre o imóvel todo, mas apenas sobre a fração do imóvel que cabia ao multiproprietário réu na ação de execução.
Com o aumento do número de empreendimentos baseados nessa premissa, o legislador brasileiro decidiu por (i) pacificar que é juridicamente possível a multipropriedade imobiliária no sistema de direitos reais brasileiro; e (ii) estabelecer de modo detalhado normas jurídicas sobre instituição, administração, transferência e registro da multipropriedade imobiliária e direitos dos multiproprietários.
De acordo com a Justificação que acompanhava o projeto de lei que se converteu na Lei n. 13.777, “a multipropriedade reflete a dinamização do direito de propriedade, permitindo que uma multiplicidade de sujeitos detenham a titularidade de um mesmo bem, mas tendo por diferencial em relação ao tradicional condomínio o fator tempo, na medida em que o titular da propriedade somente pode exercer o seu pleno direito de proprietário em determinados períodos de tempo, limitados e recorrentes, dessa forma possibilitando o revezamento do exercício do direito de propriedade pleno com outros tantos proprietários desse mesmo bem. Em outros termos, é o compartilhamento de propriedade no tempo e não apenas no espaço. (…) Trava-se, sem dúvida, de uma visão revolucionária do direito de propriedade, com potencial enorme de dinamização da economia pelas facilidades que o instituto da multipropriedade oferece de acesso a bens que, dessa maneira, podem ser compartilhados com uma gama maior de pessoas, facilitando o aumento da oferta, como da procura, sem descaracterizar-se como direito real que é, com possibilidade de transferência inter-vivos ou causa mortis, bem como sujeita à hipoteca e à penhora. No entanto, o tema ainda gera enorme insegurança jurídica pelo fato de carecer de regulamentação, por lei específica, que permita à sociedade melhor aquilatar as vantagens e desvantagens desse tipo de negócio, evitando assim abusos e controvérsias quanto ao delineamento desse fenômeno jurídico no direito de propriedade”.
Alteração à Lei de Registros Públicos
A Lei n. 13.777 promoveu alterações, ainda, à Lei n. 6.015/73, conhecida como Lei de Registros Públicos, para adaptá-la aos reflexos registrários que o regime da multipropriedade deve produzir.
Disciplina Legal e Cautelas
Tanto a realização de um empreendimento sob o regime de multipropriedade quanto a compra de uma fração de imóvel sob o regime de multipropriedade requer cautelas especiais. Sob o quadro normativo introduzido pela Lei n. 13.777, há uma substancial margem para negociação das cláusulas do instrumento de instituição do regime de multipropriedade (inclusive a respeito de direitos, deveres, responsabilidades, despesas, número máximo de frações, se haverá ou não direito de preferência na aquisição da fração de multiproprietário alienante etc.), o que torna possível adequar o aproveitamento do imóvel de acordo com a vontade das partes, mas, ao mesmo tempo, permite que cada empreendimento imobiliário em regime de multipropriedade apresente características específicas, que devem ser suficientemente conhecidas pelas partes.
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